terça-feira, 17 de setembro de 2019

O que é Paris ? Eu vivi mesmo isso tudo ?


Tento escrever esse texto enquanto a memória das lembranças que vivi começam a desbotar da minha consciência. Essa volta para Belo Horizonte foi mais aterrorizante do que pensava. Quando peguei o avião, vi uma França recortada em paisagens modificadas. Até o horizonte, os arredores de Paris eram recortados por formas retangulares verdes e laranjas. Perto das cidades entre os campos, as árvores delineavam os limites entre o urbano e o rural. Quando desci 12 horas depois no aeroporto de Belo Horizonte, vi até o horizonte uma paisagem modificada. A terra vermelha e seca era a marca de que há muito tempo não chovia na minha casa. As árvores frondosas e esparsas de Minas Gerais. A mulher chamada Marlene, moradora do barreiro, que durante todas as extensas 8 horas de avião entre Lisboa e Belo Horizonte, me fez lembrar desse sotaque tão amado.

Fazem três semanas que cheguei. É como se você tivesse largado um desenho por terminar e voltasse dois anos depois. O papel continua o mesmo, embora tenha envelhecido um pouco, ele ganhou aquele coloração amarelada. Algumas partes mais complicadas, como as mãos, você nem se lembra mais como faz. Outras partes que você havia começado a colocar cor, mancharam ou perderam a intensidade pelo tempo que passou. E na verdade, quando você olha o desenho... O que estávamos desenhando? Era uma pessoa ou um prédio? Estávamos mesmo desenhando? 

É retomar o inexorável. 

Eu permaneço em estado de comparação. Preservar a memória dessa existência do outro lado do oceano parece essencial pra realizar as mudanças que quero na minha vida aqui. O que foi Paris pra mim?

Muito além de todas idealizações, todas as fotos de Instagram com a torre Eiffel, todas as fotos de vestidos e beijos floridos no sol do verão parisiense e de todos as boinas, bigodes e baguetes embaixo do braço, a pergunta que mais me veio à cabeça nesse tempo foi : Onde está aquela Paris dos filmes ? Onde a cada esquina tinha um acordeão, um francês de bigode e blusa listrada preto e branca, um baguete embaixo do braço e fumando seu cigarro enquanto fala sobre a vida ? 

Até hoje só encontrei a baguete embaixo do braço. Os acordeões nas esquinas são imigrantes ou refugiados buscando uma vida melhor e eles tocam música para que os turistas joguem uma moeda no estojo do acordeão. Os vestidos e beijos floridos foram editados no photoshop, as esculturas e obras magníficas do Museu do Quai-Branly não revelam os massacres contra os povos africanos. Isso e todo o resto, na verdade, se traduz numa fila gigantesca pra subir na torre Eiffel. Conheci muitos parisienses que nunca subiram na torre Eiffel. É um preço exorbitante que alimentaria uma família de 3 pessoas durante pelo menos um dia.

Paris pra mim foi sobretudo um ambiente de adversidades. Eu tinha acesso à uma escola de engenharia de elite e ao mesmo tempo, eu tinha acesso à uma geladeira e uma prateleira vazia em casa. Acesso à pessoas que estavam vivendo a melhor parte de suas vidas, saindo todos os dias, indo em festas incríveis e realizando viagens inesquecíveis enquanto eu chegava em casa e tentava ignorar a necessidade do meu corpo de jantar. Foi um ano e meio dos dois anos que convivi entre as pessoas iluminadas que moravam no céu, enquanto minha alma continuava no inferno. Às vezes eu sinto que minha mente preferiu acreditar que tudo era um sonho. E eu vivi nesse lugar entre a realidade e o abstrato durante todo esse tempo.

Dentro de mim, Paris tem um outro significado. Lembro que todos os dias quando saíamos do metrô, um homem, que morava na estação Pyrénées, estava lá sentado com um círculo de sujeira extremamente fedorenta ao redor de si. Os funcionários do metrô jogavam um desodorante ao redor dele pra justamente inibir o cheiro forte. Sempre me perguntei por qual razão ele acordava todos os dias, sentava-se naquela cadeira, se sujava completamente e ficava olhando as pessoas saírem e entrarem no trem do metrô. Será que ele gostava de observar ou o que ele queria era ser observado? Na rotina dos dias, lembro que à partir de um momento preciso, ele não estava mais lá. Um elemento da minha rotina havia mudado. E na minha consciência, a pergunta "pra onde ele foi?" se manteve constante durante algumas semanas. Teria ele desistido de ficar ali? Talvez ele tivesse finalmente encontrado o que queria ver ou viver. Mudado daquela rotina prisional, aberto a porta de quem ele era e atravessado em direção ao desconhecido que mora dentro da gente. Talvez tivesse falecido, avançado em direção aos trilhos enquanto o próximo trem se aproximava.

Algumas semanas mais tarde, ele estava lá novamente. O alívio pela presença dele e a tristeza por ele não ter conseguido se libertar dali foram imensos. Eu não conseguia me libertar e eu havia torcido durante todas aquelas semanas pela liberdade dele. Estávamos ambos ali, prisioneiros da nossa própria realidade, sem previsão de condicional ou tratamento especial. Mas que realidade era essa que éramos prisioneiros? Eu acordava, tomava uma ducha, ia pra EIVP, estudava o dia todo com o intervalo de almoço, saía com alguém pra conversar sobre aquilo tudo que estava vivendo, voltava pra casa e estudava mais um pouco. A rotina dos dias esconde as regras que nos foram impostas por esse jogo que chamamos sociedade. 

Acreditava que precisava ir em todas as aulas, mas aprendi que as melhores aulas são nas ruas, com as pessoas que estão ali vivendo e tendo experiências únicas e pontos de vista inestimáveis. Paris me fez ver que a maior riqueza que nós temos nesse planeta são essas pessoas. Conheci pessoas que fizeram fortuna trabalhando com advocacia e outras que fizeram fortuna com prostíbulos. Conheci pintores totalmente desconhecidos e geniais em noites completamente absurdas e garçons que como eu, tentavam viver naquela cidade extremamente cara. Conheci o céu e o inferno, mas também conheci o espaço no meio, onde a maioria das pessoas vive.

Paris me mostrou a riqueza que cada um contém. Como os pontos de vista podem se unir pra formar uma nova perspectiva que é mais do que a soma de suas das partes.

Agora fica a pergunta de como usar isso tudo aqui. Nesse desenho inacabado que deixei de lado.

Mas mais importante do que terminar esse texto com uma frase de efeito. Queria te perguntar déjà.

O que você acha?
Share: